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Colectivo Mumia Abu-Jamal

Vhils foi gravar os rostos de moradores nas ruínas do 6 de Maio


Graffiter mundialmente conhecido foi homenagear moradores de um bairro que está em processo de despejo. Pintou-os nas ruínas para lembrar que, “quando se destrói as paredes sem dar alternativa, é a vida da pessoa que se destrói também”.
Por Joana Gorjão Henriques "Público"

Vhils pôs o músico Katuta Branca e a cabo-verdiana Ondina Tavares a viverem como vizinhos outra vez. Os dois moraram em frente um ao outro durante anos, no bairro 6 de Maio (Amadora). Mas, seis meses depois de a polícia ter batido à porta desta mulher, mandando-a sair para lhe poder demolir a casa, o edifício hoje resume-se apenas a escombros – e a sua vida continua num impasse.
Ondina mudou-se para o interior do bairro, para o antigo apartamento dos pais, que ficou em nome do irmão, o proprietário oficial, encontrando assim uma solução provisória. Hoje já não dá logo de caras com Katuta Branca, um dos rostos icónicos deste bairro na periferia de Lisboa, conhecido pela música que ficou registada em enciclopédia. Porém, nesta sexta-feira de manhã, quando acordou, viu o seu rosto e o de Katuta Branca lado a lado nas paredes de duas casas demolidas, pintados pelo artista que ficou mundialmente conhecido pelos seus graffiti.
Não foi uma surpresa total, porque na noite anterior Alexandre Farto (o nome de Vhils) conversou com Ondina. Só não tinha era decidido que Katuta Branca iria ficar ao seu lado.Pelas 23h de quinta-feira, de roupão, Ondina abre a porta e leva-nos para uma sala que tem menos coisas do que da última vez que a visitámos, em Novembro. Já não há sacos pretos cheios de roupa e objectos a ocupar quase toda a pequena sala.
A filha e os netos não estão ali: arranjaram dois quartos, por 300 euros, numa casa na Reboleira.Sentada num das cadeiras, Ondina, reformada por invalidez, ouve atentamente o que Vhils lhe explica. Ele abre o computador e mostra-lhe o seu rosto em grande formato, projectado numa das paredes.
Está a preto-e-branco e é uma montagem a partir de uma fotografia tirada pela fotógrafa Ana Brígida, numa reportagem para o PÚBLICO.
– Não vai ficar nesta parede, mas é só para lhe mostrar, diz Vhils.
– Isso é o meu retrato?
– É.– Ave Maria!! – exclama Ondina – a gente do bairro vai fugir!
Vhils diz-lhe que ela está bonita. Com ar pensativo, ela ri-se, acha que não. 
– Se não estiver confortável, não tem problema. A ideia é fazer uma homenagem à força que as pessoas daqui tiveram. E é uma homenagem a si 
–, diz o jovem que em 2015 dedicou a sua condecoração de Cavaleiro da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada a todas as periferias do Portugal e aos que “não tiveram as mesmas oportunidades”.
Ondina vive há 18 anos no bairro 6 de Maio, um dos que a Câmara Municipal da Amadora (CMA) está a demolir, seguindo o Programa Especial de Realojamento (PER) para erradicar as barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O objectivo do PER, feito em 1993, é dar apoio financeiro às famílias para construção ou aquisição de habitações mas está a seguir um recenseamento com mais de 23 anos.As demolições são frequentes no 6 de Maio há anos, e mais sistemáticas desde 2015. Muitos que não estão no PER se queixaram de terem sido despejados sem que lhes fosse dada alternativa a longo prazo, pois a ajuda apresentada era um mês de renda ou um abrigo da Segurança Social no qual poderiam ficar temporariamente.
"Como se fosse uma estátua"
Anda-se no bairro e o cenário é apocalíptico. As ruelas estreitas e escuras têm lixo em cada passo. O entulho é o mais comum, por isso as casas, que de si já têm poucas janelas, convivem lado a lado com estilhaços. Vhils entra acompanhado pela sua equipa, o contacto são dois jovens que vivem no 6 de Maio desde que nasceram, o rapper Vado Más Ki Ás, 21 anos, e João Lopes, 33.
Em fila, e andando rapidamente, o grupo está primeiro a fazer uma prospecção às zonas onde Vhils poderá intervir com graffiti, escolher paredes de casas em ruínas e não incomodar os moradores. Precisam de uma puxada de electricidade para o computador e projector que permitirá desenhar os rostos na parede. A chuva não pára. O grupo, só de homens, reúne-se num terraço, entra e sai gente das casas. É preciso tomar decisões: quem colocar nas paredes, pedir autorização às pessoas, escolher as imagens. Na casa do lado discute-se, alto, filosofia grega. Ouve-se falar de Sócrates e de Platão.
“Quando se é jovem tem que se voar”, está escrito, a letras pintadas de forma perfeita numa das paredes. Também ao lado se vê o nome de Musso (Diogo Seidi) bem carregado, o jovem de 15 anos que morreu em 2013, depois de uma detenção pela polícia. É uma das hipóteses de rosto a homenagear.
Vado Más Ki Ás também está na calha. A ideia de acordar e se ver na parede deixa-o feliz. É “como um sonho”, ter a sua cara na parede, é como “se fosse uma estátua, um símbolo do bairro”. A intervenção de Vhils representa "uma nova experiência para o bairro, uma boa contribuição”, diz, habituado a ver o 6 de Maio nas notícias por causa das rusgas da polícia.
O rapper vive agora no Cacém, depois de a CMA lhe ter atribuído financiamento para comprar uma casa, ao abrigo do PER. “Se fosse uma casa dada pela câmara não tinha tantas regalias, comprei a casa e está comprada”, diz, sem querer revelar o valor atribuído. Mas todos os dias – todos – vai ao 6 de Maio. Ainda se considera um morador, até porque é aqui que tem amigos e família. Critica os despejos de quem não tem direito ao PER, feitos sem respeito, considera. 
Chamar a atenção para a situação
Os rostos dos moradores nas paredes das casas em ruínas, desenhados por Vhils e pela sua equipa, vão valorizar o 6 de Maio, dar mais espírito e auto-estima aos moradores, diz. “E vai aparecer em todo o mundo”, comenta, visivelmente entusiasmado. João acha que o bairro vai “ficar mais colorido”. O pessoal “vai curtir” e perguntar: “Porque é que não meteram a minha cara também?!”, comenta a rir. João é um dos moradores que tem direito ao PER, mas está à espera que a CMA lhe dê as verbas.
“Consegues mandar esta foto um bocadinho maior?”, pergunta Vhils a Vado. “Acho que não.” No computador, o artista nascido em 1987 vai ajustando imagens. Lembra o projecto que fez em Santa Filomena, há uns anos, ele que também esteve numa favela do Rio de Janeiro a fazer um statement semelhante. “Na altura fizemos um workshop em Santa Filomena, que teve um processo similar, e complicado. Pintámos com o pessoal. Aqui, havia um silêncio à volta [do problema], apesar de se ter gerado uma discussão. A ideia é fazer uma homenagem e pôr o rosto das pessoas que restam do bairro, chamar a atenção para a situação. Para que no acto da destruição haja essa metáfora de que quando se destrói, e não se dá alternativa, está-se a destruir a vida da pessoa. A força da imagem pode ter alguma mensagem.”
Impressiona-o as pessoas que perderam tudo, que ficam com as coisas à porta. “Não quero glorificar esta situação. O objectivo é falar sobre a alternativa que não é dada quando se faz a demolição”, sublinha.
Debaixo de chuva, Vhils e equipa pegam nas latas e desenham Ondina e Katuta. No meio da noite, a polícia apareceu, fez uma rusga, ordenou a paragem dos graffiti. Foram um pouco brutos com um dos rapazes, conta o artista. “Quem é que estavam realmente a proteger?”, questiona Vhils.
Já na sexta-feira de manhã, Ondina Tavares chega perto do seu rosto. Não reconhece de imediato, porque as sombras deixam alguma ambiguidade. Aponta para Katuta Branca, na outra parede. Também não o reconhece à primeira. “Esse sítio também vai abaixo, não é?”


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